26/10/2010

Pelos caminhos das letras


> Estado de Minas, 25/10/2010 - São Paulo SP 
Pelos caminhos das letras 
Jovens e idosos relatam histórias de dificuldade e superação para conseguir viver nummundo em que a escrita pode ser a diferença entre a dura realidade e o futuro promissor 
Amanda Almeida
A ordem era enérgica e não adiantava discutir: a filha estava proibida de se matricular na escola. Na cabeça do pai, em poucos meses, a “assanhada” arrumaria namorado. O relato de Maria das Graças da Silva, de 63 anos, que cresceu em Jequeri, Zona da Mata, é repetido por outras colegas da turma de Educação para Jovens e Adultos (EJA) que se reúne numa igreja no Alto Vera Cruz, na Região Oeste de Belo Horizonte. “Antigamente, pai não deixava sair de casa. Só me mudei para casar. Vieram os filhos e fiquei mesmo analfabeta”, relata Maria. Ela está na faixa de idade mais crítica, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009 (Pnad): 20,1% da população com mais de 50 anos é iletrada. Como muitos companheiros do EJA, Maria não se dedicou aos estudos antes de criar os 19 filhos, hoje são 10 vivos. “Não tinha como guardar um tempo para os cadernos. Precisava colocar comida na boca dos meninos”, diz. Mas ela alimentou o sonho de chegar à sala de aula durante toda a vida, marcada por traumas do analfabetismo. “É a pior coisa que existe. Não podia andar sozinha, não sabia o preço de nada, não conseguia pegar um ônibus. O mundo era feito de códigos que eu não conseguia decifrar. Minha carteira de identidade era uma digital sem assinatura.” 

Ele não quis mais procurar a escola, mas Maria aproveitou que os filhos cresceram e se matriculou na turma do EJA há três anos. “Para falar a verdade, não aprendi muita coisa ainda. Mas já sei assinar meu nome e até troquei a minha carteira de identidade”, comenta, enquanto outros colegas dizem que também já fizeram a troca do documento. Apesar de várias experiências se repetirem, os grupos de EJA são heterogêneos, reunindo um público formado por jovens, idosos, trabalhadores e pessoas atendidas pela inclusão social. 

Enquanto nas áreas rurais prevalece o programa Brasil Alfabetizado, nas capitais os grupos de EJA predominam. Em Belo Horizonte, o projeto foi implantado em 2004. Há 648 turmas e, no ano passado, 1.716 alunos foram certificados e deixaram de ser
considerados analfabetos. “Consideramos um número significativo, mas ainda há o que avançar. A batalha é árdua. Ao mesmo tempo que precisamos investir nessas turmas, é necessário um esforço muito grande para que os jovens concluam os estudos na época certa”, diz a diretora do Centro de Aperfeiçoamento do Profissional da Educação (Cape) da Secretaria Municipal de Educação, Gioconda Machado Campos. Atrair os analfabetos à escola é um dos maiores desafios apontados pela diretora. “Para diminuir a dificuldade de eles chegarem ao espaço, criamos turmas em igrejas e centros comunitários. Para que eles não abandonem, tentamos fazer atividades diferentes, como visitas a museus e viagens.” 

AMOR DE MÃE: Ágata Kelly Silva Campos, 22 anos - Aos 10 anos, Ágata Kelly Silva Campos, hoje com 22, sofreu ao ver a mãe deixando sua casa no Jardim América, na Região Oeste de Belo Horizonte. A instabilidade na vida familiar teve reflexos na escola e, com baixos desempenhos, abandonou a sala de aula. Voltar aos estudos ficou ainda mais difícil quando, aos 20 anos, foi mãe e, um ano depois, teve o segundo filho. Até o ano passado, ela só sabia assinar o nome. “Mas percebi que precisava mudar isso para criar meus filhos. Quero ajudá-los na escola e me qualificar para ter um bom emprego. O mercado de trabalho é muito competitivo e o mínimo exigido é a leitura”, diz. Mas deixar os filhos em casa para frequentar as salas de aula só foi possível com a colaboração da mãe. “Ela voltou para casa e tem me ajudado muito.” 

SUPERAÇÃO: Valcio Elcio Henrique, de 32 anos - São 15 anos de sala de aula e uma vontade infinita de aprender. Mesmo depois de tantos anos, Valcio Elcio Henrique, de 32 anos, continua arrumando com carinho o material escolar para ir à Escola Municipal Deputado Milton Salles, no Jardim América, na Região Oeste de Belo Horizonte. Ele tem deficiência cognitiva e faz parte do projeto de inclusão da Educação para Jovens e Adultos (EJA). “Quero aprender tudo. Já sei alguma coisa, mas ainda 
falta mais.” Ele diz que largou a escola quando era criança, porque não gostava da professora. “Ela dava atividades bobas. Só queria brincar de colorir, recortar sílabas e colocar as palavras em círculos. Não me estimulava”, comenta, mostrando o caderno com quase todas as folhas preenchidas. A letra redonda e caprichada mostra o avanço. FÉ NA PALAVRA: . Joanice Gomes de Oliveira, de 61 anos - A aposentada Joanice Gomes de Oliveira, de 61 anos, não falta aos cultos na igreja perto de casa, no Alto Vera Cruz, na Região Leste de Belo Horizonte. Atenta, ela fecha os olhos para guardar as palavras que o pastor pronuncia e já decorou algumas passagens da Bíblia. Mas ela quer mais. Analfabeta, Joanice entrou numa turma de Educação para Jovens e Adultos (EJA), com objetivo único. “Se Deus quiser, até o fim da minha vida vou conseguir ler um salmo e eu sei que Ele vai me ajudar”, afirma. O livro sagrado foi também o pontapé para outros cinco colegas do grupo de 15 alunos. Joanice diz que já foi “de tudo” na vida. “Trabalhei como faxineira, servente, cozinheira, lavadeira... Não tinha tempo para estudar. A prioridade era dar um futuro para os meus três filhos biológicos e dois de criação”, comenta. 

QUALIFICAÇÃO: Maria Augusta Souza, de 78 anos - A aposentada Maria Augusta Souza, de 78 anos, sempre teve dificuldade para conseguir emprego e garantir renda capaz de sustentar oito filhos. “Analfabeto até acha emprego, mas é sempre de faxineira, lavadeira e pedreiro. Passa humilhação e ganha pouco. O mercado é praticamente fechado para quem não sabe ler”, relata. E como a fome batia à porta com frequência, a educação ficava cada vez mais longe. Viúva e com os filhos criados, ela conseguiu realizar um sonho nos últimos anos: arrumou pela primeira vez uma mochila com caderno, lápis e borracha, pôs nas costas e seguiu para escola. A leitura ainda não é perfeita, mas ela já deixou um obstáculo para trás. Por anos, sentiu medo de visitar lugares desconhecidos. Quando era obrigada a enfrentar o desafio, os filhos a monitoravam por telefone

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